sexta-feira, 2 de maio de 2014

Futebol, Racismo e Bananas

No último domingo (27 de abril), o lateral direito da seleção brasileira e do Barcelona fez um ato que causou furor no noticiário: ao bater um escanteio, um torcedor do Villareal jogou uma banana em campo, em ato puramente racista, e então Daniel Alves pegou a banana e a comeu.
Uma atitude genial, afinal ele embaralhou o campo semântico, ao tirar do ato, uma banana sendo jogada para um macaco (um negro ou pardo), ao reduzi-lo ao fato de uma banana ser... uma banana. Parece ser algo idiota, afinal bananas são frutas e frutas têm que ser comidas, porém ele fez um jogo intelectual muito complexo e com espontaneidade, o que mostra a ainda mais força por trás do ato.
O campo semântico tem muito poder, porque, simplificando muito, remetem à semiótica de signos, significado e significante. Ou seja, temos um signo, banana, que tem dois significados distintos, uma fruta e uma alusão racista, e frouxa, aos negros, e o que esse significado possui para o quem o observa, o significante. Naquela situação, naquele contexto, o segundo significado pareceria o mais apropriado. E ai que entra a virada no jogo do campo semântico. Em um lance que não dura dois segundos, Daniel Alves talvez tenha alcançado o maior feito de toda a sua carreira.

Infelizmente, o racismo é presente na sociedade, por isso é presente no futebol. O técnico Vicente Del Bosque, gênio e atual campeão do mundo e europeu, disse que não há racismo no futebol em si. Acredito que Del Bosque quis dizer que entre os profissionais do ludopédico – jogadores, técnicos, preparadores, cartolas e jornalistas – o racismo não é um fator relevante. Alguém seria idiota o suficiente em não contratar o Pelé para seu time somente pela cor de sua pele?
Até compreendo o pensamento do técnico espanhol, porém, como parte integrante de determinada sociedade, o futebol acaba sendo um reflexo daquilo que ela é, mesmo que de forma distorcida. E onde reside o racismo no esporte bretão? Justamente naquela parte não profissional, e mais sociológica e antropológica: na torcida.
Por ser um apaixonado, logo um ser comumente tido como supressor da razão em prol dos sentimentos e instintos mais básicos, ao torcedor tudo é permitido. Pode ameaçar jogador? Pode. Pode xingar? Pode. Pode vaiar? Pode. Pode ir de Porto Alegre até Manaus ver um jogo entre São José e Nacional? Pode. Pode-se tudo, sendo torcedor.
Ao que reside o perigo, pois com isso o torcedor é tido como alheio a sociedade, dono de um código de conduta próprio e único, em um terreno onde nem sempre as leis são aplicadas. Se você, homem comum, xinga alguém na rua, o que acontece? Provavelmente você será processado por injúria; e se você xinga alguém nos estádios, digamos, o juiz, o que acontece: você recebe aplausos e elogios. Esse paradoxo do torcedor é que gera atos como esse do Daniel Alves e outros tipos de racismo.
Voltando, um pouco, ao que disse Vicente Del Bosque sobre o racismo no futebol, basta pensarmos em quatro seleções europeias: Portugal, França, Inglaterra e Alemanha. Nesses quatro países, temos um forte fluxo migratório, seja de ex-colônias (os três primeiros casos, principalmente), seja de países às margens econômicas da União Europeia (Inglaterra e Alemanha). Se escalarmos a seleção alemã da última Eurocopa, teremos, entre os 23 convocados, 7 jogadores de origem fora da Alemanha, filhos de imigrantes turcos, poloneses e africanos em geral. A francesa o número é ainda maior: pelo menos 11 jogadores, de origem majoritariamente africana. Outra seleção que esse fenômeno é enorme é a holandesa, onde os negros oriundos de ex-colônias americanas chegam a representar metade dos jogadores, enquanto representam menos de 2% da população em geral. Del Bosque prova-se, então certo. Afinal dentro do futebol, em sua esfera profissional, não vemos realmente racismo. O grande problema está justamente nas arquibancadas, o grande motor e coração do esporte.
Passemos, agora, para as repercussões do ato do Daniel Alves nas mídias sociais e no noticiário.
Como todos já sabemos, logo após a reação de Daniel Alves, o Neymar lançou, na sua conta do Instagram, a campanha #somostodosmacacos, onde aparecia abraçado com seu filho segurando um banana.
Não é preciso grande intelecto para descobrir que isso logo teve um penetração enorme nas mídias. As timelines foram invadidas por fotos de pessoas segurando bananas e usando a hashtag acima. Várias celebridades também aderiram a causa – dessas, a que mais me estranhou foi a de Luís Suarez, jogador uruguaio do Liverpool, que já chegou a ser suspenso por ofensas racista; mas como diria Gilles Lipovestky: “só os idiotas não conseguem mudar de opinião.” – e a tal campanha se tornou uma verdadeiro fenômeno.
Tudo lindo, não?
Não. Afinal, ao final do dia, o apresentador Luciano Huck já comercializava em seu site, camisetas com estampas de bananas e com a hashtag, com preços a partir de R$ 69,90. A mídia apurou e logo se descobriu que a tal hashtag foi criada pela agência de publicidade Loducca, que é quem cuida da imagem publicitária do Neymar, previamente a pedido do pai e empresário do Neymar, que também já sofrera atos racistas no Campeonato Espanhol. Ou seja, a tal campanha não passava de uma jogada de marketing para vender o bom-mocismo e bom-caratismo do Neymar, afim de melhor a sua imagem.
Nem entro na vereda se ele precisa melhor a imagem dele fora das quatro linhas ou não, para isso bastava ter a mesma importância no Barcelona que ele teve no Santos – algo que, por sinal, só mostra a fragilidade dos nossos campeonatos, mas o que me espanta é como o lobo do capital abocanha cada oportunidade para se retroalimentar.
Por causa de uma meia dúzia de interessados interesseiros, toda uma ressignificação no campo semântico, além de um tapa com classe no rosto do racismo, foi para o bueiro. Afinal, esse segundo fator acabou sendo eclipsado pelo fato da campanha ter sido maquinada, não espontânea, tal como fora o gesto. É a ética do capital que corrói e corrompe tudo e a todos.

Para Daniel Alves e seu gesto, aplausos. Para a tal campanha, as vaias, os xingamentos, ou melhor: o silêncio do Maracanã após perdermos a Copa de 1950 para a Celeste Olímpica, que é, afinal, o que a ética do capital merece.

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